quinta-feira, 25 de setembro de 2014



Hermetismos em cascas de laranja, secando ao sol.
Incrível melodia virtual vinda da Ásia, profundo mergulho na aparência das coisas, 
o impenetrável sempre na bacia de plástico azul, com as laranjas descascadas... 
A luz invade toda a pequena sala, o sol amazônico vibrante se anuncia sobre a pele da cidade embalada na janela, raios suntuosos pela não veneziana, o vidro fumê de folhas deslizantes, divergentes, como as nuvens e toda a natureza se movendo, na alma apertada papel de coração contra a parede.
Feixes desmaiados na superfície do pote de plástico transparente de tampa branca que guarda a dentadura boiando na frente de uma mulher com um menino no colo de gesso, a luz de cristal deitada no pano florido marrom, na mesinha de protetores sobrenaturais, com os souvenirs, brindezinhos de festa de criança, batizado, velório, flores de E.V.A emergindo no copo do extrato do elefante verde.
Sim, o relógio é a memória, mas está parado, diz-se que mede um tempo barato.
A luz do sol me dá coragem, assim também deve ser com a noite. Fiambres de luz, escalas de tons de claridade editam bobas descobertas, iluminam a todo encanto meias verdades, azuis, verdes, diáfanas.
A noite não está tão quente, flores roubadas murcham estacionárias na xícara de café sem asas. 

Dá vontade de comer passas e fumar um cigarro.
O incenso dama da noite queima enfiado na rachadura do sabonete para pele acneica, repousa na saboneteira vermelha de plástico, sobre a mesa, disfarça bem o cheiro de planta queimada.
Na cruz encostada na parede vermelha, ainda morna, está fixada por uma fita adesiva uma fotografia três por quatro apagada, atrás da cabeça de deus. Ele está todo ensaguentado na cruz, exageraram na tinta, pernas e braços cobertos de vermelho, no rosto também, cabelos, barba e pescoço vermelhos. Há outra foto colada aos pés do homem preso na cruz, essa ponta do crucifixo na penumbra, a menina apagada. Quando foi que anoiteceu de novo?
A vela derretida não percebe que há esperanças incômodas e secas, a dar nós em santos.

THi Za




Nada na rua noturna incrustada de carros 

Atravesso avesso verso
do mundo com a feroz pressa
da noite que passa
ventilador ligado balançando as persianas de pano e paciência na janela
observo a cadeira torta
buzinas são fiapos coloridos de tempo e tédio fixados no tapete gasto
a louça do jantar acompanha a mesa morta
na beleza incerta mobília modesta
no vazio da caixa de cimento
Grilos cigarras no caminhão velho monstrinhos de luz no teto
a lua que passa
o caderno aberto na pauta muda
Silêncio mistério suspense no estalo da geladeira
Paredes quentes de um dia de sol
perambulantes no assim mesmo pessoas conversam
lá fora que passa
um ratinho transita rápido sobre o fio elétrico
o fio elétrico invadiu a folhagem da árvore na calçada e dobrou a esquina
o ratinho se manteve discreto até sumir do mapa e adentrar o breu
dois homens vêm falando alto
não se sabe o quê
um desejo, uma vontade que passa
um querer preencher a pauta
Sinto ranger a porta confundindo o vento o retrato a lembrança
os papéis intrusos sobre a cama
flutuantes as palavras de sono
solidão esparramada estala os dedos, estica as pernas
ouço um pedido para que se desligue a luz e amanheça

THi Za


quarta-feira, 17 de setembro de 2014


Tempo de Manga


Manga na cabeça, manga que errou por um triz a ponta do seu nariz!
Manga na calçada, na calada do dia e na manga da noite, na sarjeta ou sobre a mesa, uma banda de manga dentro da geladeira, fechando o bueiro, caroço tão lambido que ficou branquinho...
Manga nunca natureza morta
Manga do apanhador de manga, com suas varas de pau, paninhos de partes de roupa e paneiro de palha, sua arte é apanhá-las nas ruas das mangueiras.
Vão caindo, vão caindo, no tempo de manga dá, dá
Caiu da Mangueira, estrebuchada no chão, uma manga boa novinha, vou levar!
Manga com farinha, com fiapo no dente, com sujo do chão, vou comer todinha, vais virar suco aqui mesmo!
Manga que amassa latão de carro, que assusta a moça que passa, que deixa quem não a juntou sem graça, manga da praça, esperando no carramanchão
Manga na prateleira, na moita, na esquina, no anteparo do portão, na casquinha do sorvete da velhinha, no tabuleiro, na sacola, pro lanche na escola
Manga na janela espiando o vizinho, no quintal, no vaso, no carro, no sinal, escondida a trás da porta, embaixo do jornal, manga voando...  vi algumas no telhado
Manga na lama, na cama, manga fama da cidade
, sujando a carteira dentro da bolsa até chegar em casa as gentes, em cima do muro, no balde
Caiu da mangueira, aquela sem um arranhão, manga pro cidadão, vou levar de presente pro meu parente! 
Tinha manga no chapéu
Caía manga do céu
Na gôndola do supermercado LíderZan tem manga, mangas daqui e de outros lugares, mas prefiro essas que caem das árvores e que são de grátis!
Manga no papelão do homem da rua que dorme na Doca, no Ver-O-Peso, na Terra Firme, no Guamá, na Pedreira, na Pratinha, sei lá

Manga por dentro um coração 
Meia-lua polpa, semente ao solo querendo atenção
Manga de amigos, manga de chupar a saudade das tuas avenidas de mangas chuvas e de mangas sol, Belém, de mangas tempestades que te levam, de ventos de rios, da intimidade de casa, da árvore na porta, das magueações...  - A manga, mana, é de quem pegar primeiro.



THi ZA


sexta-feira, 12 de setembro de 2014



À João de Alguém

João, um qualquer
Posso usar teu nome no que me convém
Mendigo que se foi não interessa a ninguém
O ovo que te neguei, a panela que não te emprestei, o abrigo que não te dei, a tua palavra que eu não escutei, teu presunto estragado que eu recusei guardar pra ti na minha geladeira hipotética.
Porque estavas bêbado, gritando nos corredores das instituições, eu te rejetei, João, te achava chato, ainda consigo olhar em teus olhos, quatro Iris brilhando, eu e você, e você morrendo, e eu também. Eu todo dia um pouco me vou, para algum lugar, seja a morte ou a sala vazia, me vejo andando por aí, para com a pressa deschegar a lugar algum, num vagar que me reanima. Não te ajudei, apenas te julguei um louco, como eu, talvez pior. (mas trocamos alguns cigarros).





Um lado do rosto sempre mais cansado
Uma assimetria sentimental
Pensava sobre si mesmo
Enquanto digitava coisas no papel
E o incenso abre-caminhos queimando o laptop sem perceber
Um barulho de buzina lá fora
Uma cidade mais mansa
Num acontecer relapso
A imagem interna do corpo, emoção e alma, a imagem interna do seu corpo, talvez, relativamente, assimétrica, sobretudo presa à carne, pesando-lhe as horas que faltam
O que seriam as olheiras de dentro?
Absurdo
intestinos, interstícios 
E assim ficava imaginando as coisas, coisas que são luz e sombra...
Em alguns momentos cogitando o sobrenatural, o indefinidamente
Cigarro querendo provocar uma leve dor de cabeça, leva a dor de cabeça
Luta com a razão, pelo que não se descortina

Déjà vu


domingo, 7 de setembro de 2014


Sala de Espera



Criancinha sentada nas pernas da mãe, mãe agarrando a cintura cria. Movem-se duas mãos. Uma para a outra.
Batidinhas na palma da mão da mãezinha...
não pára de dar batidinhas,
palminha de mãozinha tão pequenininha e fina ainda, parece de ser humano novo, que ainda não sabe, e é.
encostando levezinho nas linhas da sorte que te pegam no colo, garotinho!
Uma palminha, duas palminhas, três. Não se escuta o movimento do toque macio que em algum infinito coaduna seus destinos, mover eterno e suave em finas mãos do tempo, empurrando-o para a vida: distante e agora, do teu ser que se prepara.
Teus dedinhos tão novinhos, tão delicadinhos, despreocupados em percorrer uma caixinha de uvas negras até levá-las a boca, e o mastigar é outro sonho só teu e de tua mãe que imagina, coisinhas que vem no lanche que ela te preparou.
Essas tuas mãozinhas que brincam, sem saber, significam o mundo: batidinhas que acarinham a vida, numa espera por esperar, para a eternidade, em tudo presente.